sexta-feira, 22 de março de 2013

Pietà


A vitória de Pietà, do coreano Kim Ki-Duk, no Festival de Veneza do ano passado, sobre o favorito O Mestre, foi cercada de controvérsias. Isso porque o longa de Paul Thomas Anderson ficou com os prêmios de direção e ator e só não levou o Leão de Ouro porque o regulamento da mostra não permitia que um mesmo filme ganhasse em três ou mais categorias diferentes. Mas o que surpreende não é apenas a injustiça evidente na escolha, e sim como um filme tão frágil artística e tematicamente pode ter saído como o grande vencedor de um dos festivais mais importantes do planeta.

Abandonando as referências ao budismo de seus filmes anteriores, desta vez Kim Ki-Duk tenta criar uma alegoria ao capitalismo e faz citações, mesmo que nunca claras, ao catolicismo. O protagonista é Gang-Do (Lee Jeong-Jin), um personagem tão mal construído pelo péssimo roteiro - também de Ki-Duk - que pode ser caracterizado por um único adjetivo: malvado. Atuando como uma espécie de capanga que tortura e aleija os trabalhadores de sua vizinhança apenas para ficar com o dinheiro de seus seguros por acidentes de trabalho, sua vida é mudada quando Mi-Soon (Jo Min-Soo), uma mulher que diz ser sua mãe, surge para viver com ele.

A partir daí o filme se torna uma história de redenção das mais batidas, repleta de situações artificiais e forçadas. Esses problemas se intensificam pela incapacidade do roteiro e da direção de Ki-Duk de criar personagens tridimensionais e de fugir do maniqueísmo raso. Como dito acima, Gang-Do não é apenas um sujeito desprezível: seus atos de crueldade e sadismo são tão martelados pela narrativa que logo perdem impacto e ele se torna uma figura inverossímil. Por outro lado, a figura de Mi-Soon é um pouco melhor trabalhada: inicialmente surgindo como alguém que sente culpa por ter abandonado o filho, aos poucos vai mostrando também alguns sinais de crueldade, demonstrando ser alguém diferente do que entendemos a princípio. O problema é que a direção frágil de Ki-Duk destrói a construção da personagem, abusando do melodrama - e, é preciso dizer, depois da terceira cena em que o diretor filma em primeiro plano uma lágrima caindo do rosto da mãe, tal artifício perde o efeito, parecendo mais um clichê barato repetido incessantemente do que algo genuinamente emotivo.

Mas o pior em Pietà é a sua pretensão. Acreditando ser genial ou inovador, Ki-Duk tenta criar simbolismos na história que, ao invés de darem profundidade ao longa, soam bobos e simplistas, graças aos exageros e ao maniqueísmo como são tratados. Talvez sabendo da falta de complexidade do roteiro, o diretor e roteirista abusa dos diálogos expositivos, como na conversa entre mãe e filho sobre as consequências e conflitos que o dinheiro traz (numa cena que parece ter sido escrita por um adolescente filiada ao PCO). Tentando justificar as atitudes de Gang-Do pela lógica capitalista, o roteiro, ao invés de soar profundo, é bobo e infantil - e só não é pior do que relacionar (conforme demonstrado o título do filme) Mi-Soon com Maria e seu filho como Cristo. Ao que tudo indica, a intenção do diretor era dizer que o sacrifício do rapaz serviria para purificar os pecados daquelas pessoas - algo que chega a ser ofensivo de tão estúpido.

Transformando-se numa espécie de Oldboy de quinta categoria em sua metade final, Pietà possui ainda um desfecho que, assim como todo o resto do filme, surge forçado e absurdo. Vale lembrar que há um ótimo longa coreano recente sobre a relação de uma mãe com seu filho, menos pretensioso e bem mais complexo - ele se chama Mother e é dirigido pelo genial Bong Joon-Ho. Já Pietà apenas demonstra que péssimos filmes também podem sair vitoriosos de festivais de cinema importantes.

Pietà (Coreia do Sul, 2012). Dirigido por Kim Ki-Duk. Com Lee Jeong-Jin, Jo Min-Soo, Eunjin Kang, Kim Jae-Rok, Woo Ki-Hong e Jin Yong-Ok.


quarta-feira, 20 de março de 2013

Killer Joe - Matador de Aluguel


Em um dos ótimos diálogos de Killer Joe, Chris Smith (Emile Hirsch) conta ao assassino profissional Joe Cooper (Matthew McConaughey) que, antes de se envolver com o tráfico de drogas, tentou montar uma fazenda. A empreitada deu errado quando um gambá com o vírus da raiva invadiu o local e contaminou os outros animais, que tiveram que ser sacrificados. O caso, como vemos ao final do filme, é claramente uma metáfora da situação vivida pela própria família de Chris, com o gambá sendo substituído pelo personagem-título da obra.

Não que o ambiente familiar ao qual o jovem pertence fosse, antes da entrada de Joe na narrativa, um exemplo de felicidade. Tanto seu pai Ansel (Thomas Haden Church), a madrasta Sharla (Gina Gershon) e - em menor grau - a irmã mais nova Dottie (Juno Temple), são indivíduos mesquinhos e desprezíveis, assim como o próprio Chris. As relações mantidas dentro daquele ambiente não envolvem a harmonia e o bem-estar familiar, mas questões monetárias ou sexuais. Envolvido com traficantes, aos quais deve uma grande quantia de dinheiro, não é surpreendente quando o jovem, apoiado pelos outros três parentes, resolve matar a própria mãe (também descrita como uma pessoa reprovável), a fim de receber e dividir entre eles seu seguro de vida milionário.

É aí que entra na narrativa o personagem-título. Vivido por Matthew McConaughey como um sujeito frio, de fala pausadamente calculada, Joe esconde por trás de seus bons modos um psicopata cruel. Ele será o responsável pelo assassinato, mas precisa do dinheiro adiantado. Como seu pagamento também sairá do seguro de vida, ele recebe como garantia a virginal Dottie, por quem se atraiu. A menina - talvez a única figura ingenuamente inocente da trama - é trocada como uma mercadoria pelo pai e pelo irmão. A partir daí temos um roteiro onde os erros se sucedem e seus personagens mesquinhos aos poucos vão descendo aos níveis mais baixos em que um ser humano pode chegar - com direito a um clímax espetacular na última meia hora do longa.



McConaughey tem aqui a atuação de sua carreira. Depois de ficar estigmatizado pelas comédias românticas genéricas que fez nos últimos anos, 2012 marcou seu retorno aos filmes mais complexos. Killer Joe é o ponto alto do  seu ciclo de grandes performances no ano (as outras foram em Magic Mike, Bernie e The Paperboy). Da mesma forma, o desempenho de todo o elenco é sublime, com destaque para Gina Gershon, que cria uma Sharla desprezível, mesmo considerando o baixo padrão daquela família. A cena envolvendo McConaughey, Gershon e uma coxa de galinha frita é antológica e entra, desde já, na lista das melhores do ano.

Retomando uma carreira que parecia em seu fim, William Friedkin, diretor dos clássicos Operação França e O Exorcista, realiza aqui um trabalho de direção forte e corajoso, sem medo de expor seus personagens a situações constrangedoras, repletas de violência física e psicológica. Inspirado pelo brilhante roteiro de Tracy Letts (baseado em uma peça escrita pelo mesmo), Friedkin investe em uma tensão constante, culminando no já citado clímax catártico.

Marcando o retorno magistral de um diretor experiente e talentoso que não se rendeu à fórmula hollywoodiana, Killer Joe também consolida a ascensão de um ator espetacular que tinha se acomodado em papeis medíocres. Um filme fantástico que mistura a violência dos trabalhos de Quentin Tarantino com uma típica comédia de erros dos irmãos Coen. 

Killer Joe (EUA, 2012). Dirigido por William Friedkin. Com Matthew McConaughey, Emile Hirsch, Juno Temple, Thomas Haden Church, Gina Gershon e Marc Macaulay.


sábado, 16 de março de 2013

O Som ao Redor


Imagens de grades, portões e muros em volta das residências são comuns em qualquer grande cidade brasileira. Representando um sistema individualista, em que as pessoas têm que proteger a si e - principalmente - a seus bens, elas estão tão onipresentes no nosso dia-a-dia que já são tratadas como naturais. Em busca de proteção, esses mecanismos transformam nossos lares em prisões particulares e servem para saciar nossa obsessão por segurança. Mas, acima de tudo, eles contribuem para isolar as pessoas, transformando comunidades e vizinhanças em um conjunto de indivíduos estranhos uns aos outros.

As grades estão também onipresentes em O Som ao Redor, primeiro longa-metragem de ficção do diretor Kleber Mendonça Filho. O filme faz um retrato fiel e complexo das relações humanas em uma sociedade profundamente individualista, onde não há praticamente nenhuma noção de comunidade e até os vizinhos são enxergados como concorrentes ou competidores. E vai além: traçando um paralelo com nosso passado, onde a divisão de classes rigidamente estabelecida ditava o papel de cada cidadão, Mendonça conclui que nossa paranoia por segurança tem relação direta com a desigualdade e a estratificação social, resquícios de um processo histórico mal-sucedido.

O filme se passa em uma vizinhança do Recife, repleta de prédios e com apenas algumas casas esparsas que - como ficamos sabendo durante a narrativa - logo serão demolidas para abrir espaço para novos arranha-céus. Apresentando vários personagens que representam as classes alta, média e baixa de nossa sociedade, o filme se concentra em particularmente dois: João (Gustavo Jahn), que divide o dia entre o trabalho como corretor imobiliário da família - seu avô, Francisco (W. J. Solha) é o dono dos condomínios da vizinhança - e seu romance com Sofia (Irma Brown); e Bia (Maeve Jinkings), uma dona de casa de classe média, casada e com dois filhos, que vem tendo problemas para dormir graças ao cachorro da casa ao lado. O ponto de partida da narrativa é a contratação de três seguranças liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos) para fazer uma ronda no quarteirão e aumentar a proteção de seus moradores.

João é retratado como um bom sujeito que, apesar de sua vida abastada e tranquila, demonstra possuir algum tipo de consciência - ele é o único que, em uma reunião de condomínio, opõe-se à demissão do porteiro que fora flagrado dormindo em serviço, mas que está próximo da aposentadoria. Ainda assim, ele se revela um individuo conformado, incapaz de mover um dedo para mudar uma situação em que se encontra confortável. Vindo de uma família tradicional - seu avô, além de dono dos prédios do bairro também possui um antigo engenho -, João sabe que é privilegiado e, como reflexo dessa consciência, é o único a tratar os empregados com um mínimo de educação ou carinho. O brilhante roteiro, aliás, ilustra nossa desigualdade histórica através da empregada do rapaz: Maria (Mauricéia Conceição), negra e pobre, trabalhou a vida inteira para a família, com seus serviços sendo herdados de pai para filho e que, ao se aposentar, é substituída pela filha - e qualquer semelhança com nosso passado escravocrata não é mera coincidência.



Já Bia é a personificação de uma classe média individualista e em busca de prazeres efêmeros. Vivendo solitária dentro de sua própria família - ela mal conversa com o marido ou com os filhos (chegando a ser praticamente expulsa de sua própria sala pela professora de chinês dos meninos por "atrapalhar sua concentração") - Bia tenta encontrar felicidade na maconha e no consumismo (é curioso como seu principal momento de prazer é com uma máquina de lavar). Demonstrando nossa incapacidade de comunicação, mesmo com aqueles mais próximos de nós, seu drama envolvendo o cachorro barulhento da vizinha poderia ser resolvido com uma simples conversa, mas a natureza sádica e competitiva da individualidade não permite.

No fim, tudo volta à questão da insegurança e da defesa do patrimônio, mais importante do que o bem-estar coletivo - a forma como os vigilantes compartilham fotos e vídeos de pessoas mortas violentamente revelam total insensibilidade e desprezo pela vida humana. As relação sociais resumem-se ao que as pessoas possuem, seja uma televisão maior que a do vizinho, seja um apartamento com uma bela sacada. Inicialmente contratados como seguranças comunitários, aos poucos os homens de Clodoaldo vão tomando conhecimento verdadeiro daquele microcosmo. Sabem, por exemplo, que não devem se meter com o encrenqueiro Dinho (Yuri Holanda), também neto do poderoso Francisco. E, conforme a narrativa vai chegando ao fim, eles deixam de servir à comunidade e se transformam em seguranças particulares daquela família. Uma mudança salientada até mesmo pelos títulos de cada ato da narrativa ("Cães de Guarda", "Guardas Noturnos" e "Guarda-Costas").

Filmando com a classe de um veterano - o que pode ser explicado por sua experiência anterior como crítico e diretor de curta-metragens -, Kleber Mendonça Filho cria uma obra densa, mas com momentos de humor e sensibilidade. Ora apostando em tornar sua temática mais evidente ("eu tenho recebido a minha Veja fora do plástico"), ora explorando situações e planos mais simbólicos, como nas sequências de pesadelo, O Som ao Redor revela-se um filme ambicioso, repleto de detalhes e que tende a ficar melhor sempre que revisto.

O Som ao Redor (Brasil, 2013). Dirigido por Kleber Mendonça Filho. Com Gustavo Jahn, Irandhir Santos, Maeve Jinkings, W. J. Solha, Irma Brown, Lula Terra, Yuri Holanda, Clébia Souza, Albert Tenório, Nivaldo Nascimento, Felipe Bandeira, Clara Pinheiro de Oliveira, Sebastião Formiga e Mauricéia Conceição.