quinta-feira, 3 de março de 2011

Bruna Surfistinha

Durante o primeiro programa de Raquel Pacheco, verdadeira identidade de Bruna Surfistinha, o diretor Marcus Baldini fecha o quadro no rosto da jovem, num plano que dura vários segundos. A partir de determinado instante, ainda expressando a dor que sente, a protagonista interpretada por Deborah Secco passa a olhar diretamente para a câmera. A cena é um claro recado ao espectador: ela está desafiando-o a julgá-la por seus atos.

Raquel era uma menina de classe média, que estudava em um colégio particular e vivia uma vida confortável. Ela abre mão disso, abandona seu passado e se entrega à protistuição como um demonstração de rebeldia e independência. Jovem e atraente, sua fama aumenta depois que inicia um blog em que relata suas experiências profissionais. O filme de Baldini, baseado no livro "O Doce Veneno do Escorpião", escrito por Raquel, retrata essa transformação da moça, de uma menina aparentemente inocente que acaba se tornando a garota de programa mais concorrida da cidade.

Com uma estrutura narrativa linear, o roteiro emprega alguns flashbacks apenas no início do filme, levando o espectador a conhecer um pouco da juventude de Raquel. Retratada como uma moça inocente tanto pelo texto de José de Carvalho, Homero Olivetto e Antônio Pellegrino quanto pela interpretação de Secco, a jovem inicialmente não convence como uma menina capaz de largar tudo para virar prostituta. O filme tenta mostrar, por exemplo, ela se esforçando para parecer sensual em uma exibição na webcam, fracassando na tentativa. Mas logo em seguida, Raquel se recusa a aceitar os avanços de um colega da escola que tenta abusá-la. Somos apresentados a uma personagem complexa, que enxerga a sensualidade e prostituição como forma de independência e maturidade. Uma pena que o longa tente criar conflitos artificiais para justificar a decisão da menina, como o relacionamento conflituoso com o pai e o irmão, além da sensação de exclusão na escola.

Mas isso não torna o longa pior. Sem julgar a personagem em seu início, acompanhamos o início da "carreira" de Raquel e sua transformação em Bruna.  Deborah Secco acaba surpreendendo, segurando muito bem o filme. Inicialmente curvada, com um olhar tímido e jeito de menina, a atriz se sente mais à vontade a partir da segunda metade do filme, quando Bruna já está mais experiente, tendo noção de seu poder sobre os homens. Confiante, não tem medo de seduzir um policial para escapar de uma multa de trânsito, destacando-se diante de suas colegas. Ousada e independente, ela rapidamente alcança clientes mais poderosos e, demonstrando inteligência, aposta na autopromoção para fazer seu nome e mexer com as fantasias dos visitantes de seu blog.


Baldini realiza a transformação de Bruna de menina em mulher com ajuda de sua fotografia. Inicialmente com pouca profundidade de campo, refletindo a introspecção e insegurança da moça, as lentes se abrem mais para o final do filme, quando ela já não parece ter mais pudor ou medo. O diretor também é eficiente nas cenas cômicas, principalmente ao retratar os diferentes clientes de Bruna. Clientes estes que são mostrados, em sua nudez, de forma crua diante das câmeras: gordos, magros, feios e esquisitos em sua maioria, o que serve para tirar um falso romantismo dos atos sexuais praticados pela garota de programa. É nas relações da moça com os homens que residem os melhores momentos do longa, servindo algumas vezes como alívio cômico e em outras para desenvolvimento da personagem.

Infelizmente, o que caminhava bem é arruinado pela última meia hora do filme. Mudando completamente de tom, o longa assume de repente um olhar moralista sobre a protagonista. Isso fica claro, inicialmente, com a mudança brusca de comportamento de Gabi (Cristina Lago), a amiga que se transformou em uma espécie de secretária de Bruna. A moça, também garota de programa, passa a condenar as atitudes de Raquel repentinamente, num artifício para alertar o espectador de que aquilo não teria um final bom. Logo depois, o filme tenta afundar a protagonista em um tipo de decadência que soa artificial, tornando-se melodramático e maniqueísta. Próximo ao fim do longa, Bruna reencontra um cliente antigo, que a fez sentir prazer na primeira vez a ponto dela não cobrar pelo programa. Só que nessa segunda ocasião, ela age com mais "profissionalismo", numa tentativa boba do roteiro em mostrar a perda de valores da moça. É esse tom moralista que passa a ser empregado, enfraquecendo a construção que vinha sendo feita até então, resumindo Bruna, em seus instantes finais, a uma caricatura.

Essa mudança repentina acaba arruinando o que seria um belo estudo de personagem. É como se os próprios realizadores estivessem aceitado o desafio da moça no início e, covardemente, resolvessem condená-la. Um atentado contra uma protagonista complexa e surpreendente.

Bruna Surfistinha (Brasil, 2011). Dirigido por Marcus Baldini. Com Deborah Secco, Cássio Gabus Mendes, Drica Moraes, Cristina Lago, Fabíula Nascimento e Guta Ruiz.

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